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Sarah Brightman: a camaleoa do classical crossover

O ano era 1999. Em uma tarde de sábado, um jovem liga a televisão, única diversão acessível em uma pequena cidade no interior do Estado de São Paulo. Começa então o programa Planeta Xuxa e, após várias atrações, a eterna rainha dos baixinhos chama ao palco a cantora inglesa Sarah Brightman.

No início ele pensou se tratar apenas de mais uma ilustre desconhecida tentando lançar carreira no programa vespertino da então líder de audiência absoluta. Mas, quando ela entrou no palco e começou a cantar, ele percebeu que não era bem assim. A música apresentada naquele momento era tocada à exaustão nas rádios daquela cidade por ser parte de uma novela da mesma emissora do Planeta Xuxa, numa época em que os hábitos de consumo e também musicais eram ditados pelos folhetins televisivos.

Tratava-se da cantora inglesa Sarah Brightman, atualmente a soprano que mais vendeu álbuns em todo o mundo. No programa, ela cantou Dust In The Wind, originalmente gravada pela banda americana Kansas, mas que na voz de Sarah ganhou uma versão mais leve e com toques de música clássica.

Até então, o jovem não sabia quem cantava e muito menos o nome da música. Sabia apenas que tocava em uma novela e as rádios repetiam várias faixas das trilhas dos folhetins da época ao longo da programação. Em um tempo no qual a internet ainda era bastante restrita impossibilitando qualquer pesquisa, ele sempre ouvia a faixa mas não conseguia anotar e nem sequer guardar o nome, isso quando conseguia ouvir o locutor anunciando a faixa. Mas, naquele momento o aparente mistério estava revelado e nascia ali uma relação fã-ídolo que já dura quase duas décadas.

Esta história é real e o jovem é este jornalista que vos escreve. Minha admiração pelo trabalho de Sarah Brightman nasceu naquele agosto de 1999, quando ela veio divulgar o álbum Eden no Brasil, e segue firme desde então, sendo reforçada ao longo do tempo a cada álbum e que teve seu momento mais marcante em 2013, quando fui assisti-la em um show da Dreamchaser World Tour.

Mas, a história da famosa soprano inglesa começou muito antes disso, em 1960, quando a pequena Sarah nasceu, filha de Paula Hall e Greenville Brightman. A primogênita da Família Brightman começou cedo: aos três anos fazia aulas de ballet e de artes, aos doze participou da sua primeira peça teatral, aos treze de um musical e, após ser reprovada em um teste de ballet, onze anos depois de começar a estudar a clássica dança, ela começou a fazer aulas de canto.

Aos dezoito anos, Sarah entrou para o grupo musical Hot Gossip com quem lançou o hit I Lost my Heart to a Starship Trooper. O sucesso da faixa foi tão grande que o grupo mudou de nome e virou Sarah Brightman & Hot Gossip e a cantora virou símbolo sexual na Inglaterra do final da década de 1970. Mas, ela queria mais, pois sabia que esta era uma fase passageira e, para garantir o futuro da carreira, precisava de algo mais estruturado. Assim, logo depois ela saiu do grupo Hot Gossip.

No ano seguinte ela fez o primeiro papel em musicais, como Jemima, em Cats. Foi quando ela conheceu Andrew Lloyd Webber, um dos mais importantes compositores teatrais de todos os tempos e que, em pouco tempo, veio a se tornar o segundo marido de Sarah Brightman. O primeiro foi o empresário Andrew Graham-Stewart, durante a permanência dela no grupo Hot Gossip, mas a relação durou pouco tempo e eles logo se separaram.

Foi com Webber que Sarah abandonou de vez o sucesso repentino de I Lost my Heart to a Starship Trooper e começou a despontar no mundo dos musicais graças ao sentimento que ele cultivava por ela. Apaixonado, o autor/amante compunha peças especialmente para ela, para que as notas sempre estivessem dentro do seu alcance vocal, além de garantir que Brightman seria a protagonista de todas as peças. Isso persistiu por diversas obras como Requiem Mass, Song and Dance e teve seu auge na obra prima de Webber: O Fantasma da Ópera.

A paixão de Webber por Sarah era tão grande naquela época que… Bem, O Fantasma da Ópera na verdade não é um musical, mas sim uma espécie de declaração de amor dele para ela. Além de respeitar o alcance vocal de Sarah, ele escreveu a personagem principal, Christine, exclusivamente para ela. E não para por aí: uma das faixas principais, The Music Of The Night, foi escrita por Webber logo depois deles se encontrarem pela primeira vez e posteriormente foi incluída na peça e a faixa que dá título ao musical soa como declaração de amor do fantasma à Christine ou do autor para a sua musa inspiradora.

Ainda hoje Sarah é lembrada como a Christine Original, fama que parece estar longe de abandoná-la: em 2018 ela anunciou a participação como jurada em um concurso musical para escolher o Fantasma da versão chinesa da peça. Em sua carreira, esse papel também se faz presente em seus shows ao vivo: ela sempre inclui uma ou diversas referências ao musical em alguma parte da apresentação e até mesmo interpreta algumas músicas. Além disso, Sarah é referenciada pelos fãs como Angel Of Music, o mesmo apelido de Christine.

Após este estrondoso sucesso, Sarah participa de mais alguns musicais, grava alguns discos solos e em 1990 se separa amigavelmente de Webber. Três anos depois, após decidir que precisava sair da sombra de Webber e ter seu próprio nome no cenário musical, ela começa a trabalhar com o produtor Frank Peterson. E foi neste momento que a carreira de Sarah começou a despontar e ela então pôde fazer aquilo que sempre quis: o classical crossover ou pop operático, vertente musical que mistura o clássico com estilos contemporâneos como o pop e o rock.

Esse processo criativo um tanto ousado fez com que Brightman ganhasse inimigos: os puristas musicais odeiam as misturas que ela faz. Uma das mais criticadas é versão da ópera Turandot, de Giacomo Puccini, Nessun Dorma, que na versão original é feita para um tenor e ela, uma soprano. Pois ela cantou e mudou a letra, vertendo as referências ao feminino para o masculino.

Isso acontece porque a artista tem uma preocupação muito mais estética que estilística na composição da sua obra. Com influências que vão de Pink Floyd a David Bowie, não é muito difícil afirmar que Sarah é uma rockstar no sentido filosófico do termo. Um rockstar deve romper conceitos e barreiras, provocar e se mostrar inteiramente na sua obra. E ela segue isso à risca em suas criações. Ao longo dos onze álbuns lançados em sua carreira solo, Sarah lançou o megahit Time To Say Goodbye e regravou inúmeras faixas pops, que vão de Procol Harum a Celine Dion, todas com roupagem que atendam ao seu rigoroso senso estético, o que faz com que ela descarte um número muito grande de faixas, apenas observando o que ela chama de “paisagem sonora”.

Quando Sarah começou a despontar no Brasil, seu estilo musical era relativamente inédito no país e a imprensa especializada dizia que ela fazia “música com atmosfera”, termo que pode ser explicado como música que transmite a sensação de ambientação de algum lugar, seja ele físico ou etéreo. Isso acontece pois cada álbum de Sarah tem um tema que é seguido rigorosamente pela artista, tanto na concepção visual do álbum, produção musical, escolha do repertório quanto nos shows ao vivo, que quase sempre contam com efeitos especiais de luz e cenários grandiosos.

Dive (1992), o primeiro álbum de sua carreira solo, fala do mar e das águas, em Fly (1995), ela fala da vontade de voar, Timeless (1997) versa sobre a atemporalidade e a eternidade, Eden (1998) faz referência ao conceito de paraíso, La Luna (2000) traz como tema a lua e todo o misticismo que envolve o nosso satélite natural, Harem (2003) é composto por uma mistura de música árabe ou em estilo árabe com música pop, Symphony (2008) é carregado de influências góticas, sombrias e sinfônicas, Dreamchaser (2013) cujo tema é o espaço, celebrando uma importante conquista pessoal: uma viagem espacial para a qual cantora estava se preparando desde 2010 e que não pode ser concretizada no prazo previsto por questões pessoais, e, por fim, Hymn com sonoridade e inspiração próximas ao álbum Timeless (1997), e ao mesmo tempo, com forte influência de questões relacionadas ao existencialismo, à metafísica e religiosidade.

Uma das características do estilo de Sarah Brightman é a  ecleticidade. Se David Bowie foi chamado de “Camaleão” por causa de suas constantes mudanças, Sarah seria uma espécie de “Camaleoa” pelo mesmo motivo. Em cada obra ela mistura várias faixas de diferentes estilos musicais, do pop ao clássico, e depois as adapta à paisagem sonora do álbum. Exemplos não faltam: um deles é a diferente versão de What a Wonderful World, famoso jazz na voz de Louis Armstrong, que virou uma faixa pop com uma leve  roupagem rock em Harem, outro é My Heart Will Go On, trilha do filme Titanic, que nas mãos de Sarah virou uma ótima obra clássica.

Mas é em Figlio Perduto (La Luna) que ela mostra um importante resultado do seu processo criativo: Sarah mesclou o segundo movimento da Sinfonia n.o 7 em lá maior (Op. 92) de Ludwig van Beethoven com uma letra inspirada no poema Erlkönig, de Johann Wolfgang von Goethe. Para compor a atmosfera mística do álbum em questão, a cantora trouxe ainda versões da cantora pop Dido, Procol Harum e Bomb the Bass, um projeto de música eletrônica inglês. Além disso, Sarah mistura diversos idiomas em seus trabalhos pois tem habilidade de cantar em vários idiomas como inglês, espanhol, francês, latim, alemão, italiano, russo, hindi, japonês e mandarim.

Deixando de lado o rótulo de camaleoa e ousada, Sarah é uma das maiores e mais versáteis intérpretes que o mundo já conheceu. Na concepção de cada álbum, além de estar atenta à paisagem sonora, ela escolhe canções com as quais se identifica ou que acredita serem parte da experiência (ou tema/atmosfera) que ela deseja compartilhar a cada trabalho. Assim, cada música escolhida traz um pouco do que ela crê e pensa. E quando canta, Sarah consegue ampliar e combinar as ideias com a voz, sensibilidade, melodia e, obrigatoriamente, com a interpretação necessária para dar vida à peça final. Sem interpretação, a entonação e colocação vocal não saem e o resultado final não tem vida ou, usando uma expressão metafórica, a obra fica sem cor.

O poeta é um tradutor de sentimentos, muitas vezes seus ou de terceiros, ou imaginados. Ele tem o dom de dizer aquilo que o coração tem dentro de si, transformando dores em rimas, amores em frases. Quando ocorre o  casamento da poesia com a filosofia, especialmente com a metafísica, nasce uma combinação curiosa e reflexiva. O poeta é, de certa forma, um filósofo que se volta para o leitor, para a experiência, para a vida, sem questionar nem teorizar.

Sarah, enquanto intérprete e também nas suas raras composições próprias, é a divulgadora dessas ideias e o faz buscando usar tempo para criar algo maior ou para sincronizar coisas que à primeira vista parecem assíncronas. Talvez essa seja outra vertente do trabalho artístico tão presente na obra dela: criar com peças que ninguém acredita que poderiam ser misturadas, unindo itens que pareciam heterogêneos. Não é melhor nem pior que a criação “do zero”. Apenas diferente. Afinal, nos dois casos o ponto de partida é exatamente o mesmo: o nada.

E a partir deste “nada”, Sarah já formatou diversas obras, vendendo mais de 30 milhões de álbuns e mais de 2 milhões de DVDs ao longo da carreira solo. No mesmo período ela também conquistou 160 discos, de ouro e platina, em 34 países. E é a primeira cantora a interpretar o tema de duas edições dos Jogos Olímpicos: Barcelona (1992), com Amigos Para Siempre, ao lado do tenor espanhol José Carreras; e Pequim (2008), com You and Me, desta vez em parceria com o cantor chinês Liu Huan. Números nada modestos para a jovem inglesa que era símbolo sexual britânico e se tornou a soprano que mais vendeu discos em todos os tempos.

Publicado emCrônicas

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