Ir ao conteúdo

O céu dos Patriotas

Patrícia abriu os olhos e não reconheceu nada ao redor. Ela usava um vestido branco um pouco largo e em nada parecido com a calça jeans azul e a camiseta verde e amarela que trajava em sua última lembrança. Além disso, estava sem seu bem mais precioso:

 – Cadê meu celular? – disse, levantando-se em um pulo da maca onde estava deitada, enquanto um ser jovem trajando calça social, paletó, camisa e gravata brancos se aproximou.

 – Ah, finalmente você acordou. Tudo bem? Eu sou o Rafael e vou te guiar durante o processo por aqui e…

 – Onde estou? Quem é você e cadê as minhas roupas? – ela indagou, observando tudo de forma assustada.

 – Bom, por aqui o traje é esse, senhora… Deixe-me ver aqui nas anotações… Senhora Patrícia Inácio da Silva. Era esse seu nome, não é?

 Ela se aproximou de Rafael e disse baixinho em tom irritado:

 – Fala baixo! Se alguém souber que tenho “Inácio” e “Silva” no nome, vou ser tachada de comunista. Por isso que meu nome nas redes sociais é “Patrícia Patriota”.

 – Ah, minha senhora. Aqui tanto faz isso, viu. Infelizmente vou precisar chamá-la pelo nome é… “Nome de Batismo”, como vocês costumam falar.

 – Isso é censura! – bradou Patrícia, fazendo todos ao redor olharem para a cara dela.

 – O que está acontecendo aqui? – disse outro ser um pouco mais velho, trajando uma roupa igual a de Rafael, enquanto se aproximava.

 – Senhor Miguel, essa senhora aqui insiste que eu a chame pelo nome que ela usava nas redes sociais e me acusa de censura simplesmente porque disse que vou chamá-la pelo nome de batismo, que está na ficha.

 – Deixe-me ver… – Rafael passou a ficha para Miguel, que leu em silêncio para depois comentar – Hum… Interessante… Ah, já sei… Ela é daquela leva?

 – Este rapaz, meu senhor, está querendo me censurar. Eu tenho liberdade de expressão e não quero ser chamada de Patrícia Inácio da Silva e parecer que sou parte do movimento comunista! Meu nome é Patrícia Patriota e ponto final! – interrompeu ela.

 Miguel respirou fundo e disse calmamente:

 – Minha senhora, aqui isso tanto faz. Ninguém está nem aí. Só não podemos chamá-la pelo nome das tais “redes sociais”, pois isso é um surto coletivo. Outro dia mesmo, tivemos aqui um tal de Maduro24cm e, mesmo a contragosto, ele continuou sendo chamado de Francenildo Pereira e assim vai ser com a senhora e com todo e qualquer outro que chegar aqui. Estamos entendidos?

Patrícia olhou em volta e disse em tom de revolta:

 – E o senhor pode me dizer que lugar é este? Certamente é algum campo de concentração comunista! É óbvio! O comunismo ascendeu no Brasil e nós, que pensamos diferente, teremos que viver confinados!

 – Não é nada disso, minha senhora. A senhora está na morada eterna e… – tentou dizer Rafael, sendo interrompido logo depois.

 – Ah, é esse o nome do lugar? Eu sabia! A esquerda tomou o poder e agora terei que ficar aqui até a morte, fazendo trabalhos forçados e… Eu quero o meu celular!

 – Seu celular não funciona aqui, minha senhora – disse Miguel.

 Patrícia subiu de volta à maca, ficou em pé e começou a gritar:

 – Eu estou sendo censurada! Censura nunca mais!

 Nesse momento, uma mulher com um vestido branco, parecido com o de Patrícia, se aproximou e disse:

 – Miguel, o que está acontecendo aqui? Essa mulher está atrapalhando o trabalho das outras pessoas e assustando os outros…

– Ah, finalmente uma mulher! Como é seu nome, queridinha?

– Prazer, meu nome é Sara.

– Sara? Bonito nome. Eu tenho uma grande amiga chamada Sara. Patriota roxa, faz de tudo pelo país! Está acampada em frente a um quartel e será uma força importante no combate ao comunismo em nosso país! – disse Patrícia descendo da maca.

– Ah, eu sei. Nos próximos dias ela chega por aqui também.

– A Sara também foi presa?

– É… Eu não diria que ela foi presa, não é bem esse o nome que usamos por aqui. Só um instante, por favor…

Sara se aproximou de Miguel e Rafael e disse baixinho:

– Miguel, vá ajudar o Josué, acabou de acontecer um acidente e vai chegar uns 30 para a gente atender. Rafael, fique aqui perto e apenas observe, está bem?

Miguel se afastou e Sara, por sua vez, pegou a ficha de Patrícia das mãos de Miguel e se voltou para Patrícia, que disse:

– Eu não gostei desse senhor. Ele tem um ar de comunista, apoia a censura, a mamadeira de piroca, banheiro público unissex… Por isso precisamos da intervenção militar em nosso país! Só eles poderão nos livrar da ameaça comunista!

Sara tentou conter um sorriso e falou:

– Olha, Patrícia… aqui, nenhuma dessas tais ameaças fazem sentido. Nada disso existe. Tudo é um delírio infundado lá de onde você veio, e aqui é um absurdo completo.

– Você está querendo dizer que eu sou doida? Ah, pronto! Primeiro vem um querendo me calar, e agora aparece outra dizendo que eu sou maluca! Eu quero falar com o gerente ou diretor desse lugar!

– Eu acho que Ele não vai poder atendê-la do jeito que a senhora imagina, mas Ele está em todo canto. Fique à vontade para falar com Ele…

– Eu quero meu celular! Vou fazer stories denunciando essa censura e, certamente, alguém virá me tirar daqui. Meus amigos patriotas vão acionar a polícia, a imprensa que não foi comprada e todos os órgãos que estão do nosso lado! Vamos denunciar você e essa corja toda! Eu guardei seu rosto, viu? Sou influente, tenho contatos! Eu só preciso do meu celular.

Sara olhou para Rafael, que tentava segurar o riso. Ele olhou de volta, coçou levemente o queixo e tentou esclarecer:

– Senhora Patrícia, aqui pouco importa, ou melhor, nada importa os seus contatos. O nosso Diretor é soberano e está acima disso tudo e de qualquer coisa que você invente.

– Eu sabia! O tal diretor dessa espelunca foi comprado! – retrucou Patrícia – As instituições estão compradas, todas elas! Estamos no meio de uma ditadura chefiada por uma máfia comunista! Somente Deus poderá nos livrar disso! – nesse momento, um trovão soou ao longe – Um sinal divino! Eu sabia! – Patrícia se ajoelhou, fechou os olhos e continuou em tom e gestos de súplica – Senhor, peço sua ajuda, pois somente Tu poderá me tirar das garras desses comunistas e, como sou humana, temente às suas leis e preocupada com o próximo, peço que não pese a Sua mão no dia do juízo final, na hora de julgar esses dois que estão à minha frente, incluindo aquele outro que se foi há pouco.

Sara olhou para cima, respirou fundo e disse:

– Senhora Patrícia, se hoje a senhora pode nos ver, falar com a gente… E se estamos aqui dando toda a atenção que a senhora merece, é porque…

– Deeeeeeeeus! Ela insiste em blasfemar e novamente ousa me interromper nesse momento santo. Perdoa, Senhor! Ela não sabe o que faz!

Outro trovão se ouviu ao fundo e Sara olhou para Rafael, que cada vez mais sofria, tentando segurar o riso.

– Já que os militares nada fizeram por esse país, eu peço a Sua intervenção, oh, Deus! O Brasil é Teu lar, lutei a santa luta em Teu nome. Pai nosso que estais no céu…

Sara se ajoelhou, colocou a mão nos ombros de Patrícia e buscou mais uma vez consolá-la:

– Patrícia, está tudo bem. Aqui essas orações não fazem tanto sentido assim, pois temos contato direto com…

– Deeeeeeus! Agora ela ousa dizer que aqui Tu não entras e que Teus domínios não alcançam este lugar! Perdoa, Senhor! Perdoa! – Patrícia então abriu os olhos e disse – É isso! Ele me colocou aqui para trazer a Verdade! Eu não fui presa à toa! Ele é perfeito em tudo que faz e… leve-me ao seu chefe!

– Senhora Patrícia, como eu já disse, meu Chefe está em todo e qualquer lugar e…

– Deus, ela agora blasfema contra a Tua sacralidade e quer me convencer que o Chefe dela és Tu!

Sara segurou firme nos ombros de Patrícia e, irritada, disse de modo bastante enfático:

– Senhora Patrícia, a senhora está morta, porra! – nesse momento, um raio cortou o céu assustando todos em volta e Sara olhou para cima – Desculpe, Chefe! Foi mais forte que eu.

Rafael se aproximou de Sara e comentou:

– Sara, cuidado com a sua forma de abordagem, pois você sabe muito bem o que aconteceu com o último rebelde que…

– Quem, o Lúcifer? Ah, com aquele ali, o negócio foi bem mais embaixo, se é que você me entende… aliás, você nem estava aqui e… Ah, Rafael! Fica na tua! – Sara se voltou para Patrícia, que estava com os olhos arregalados, fitando de volta a sua interlocutora – Entendeu, Patrícia? Acabou! Você morreu! Ou, como vocês dizem nas tais “redes sociais” que vocês criaram para fortalecer o surto coletivo que é viver na Terra, você foi de base, olavou, arrastou para cima, virou pó… Ah, sei lá! Quer uma prova? Rafael, traga um copo com água que vou transformar em vinho ou… ou você acha que seria melhor andar em cima de um lago para ver se ela acorda…

Patrícia se levantou e seu olhar alternava entre Sara e Rafael. Após alguns minutos atônita, ela gaguejou:

– Se vocês são anjos, cadê as asas?

– Ah, não! Aí já é demais! – disse Sara, levantando-se e novamente ouvindo um trovão ao fundo – Patrícia, você acredita em um tal de “mito”; que vacinas contêm chips de internet e fazem as pessoas virarem jacaré; vocês cantam o hino do seu país para um pneu, transformam um muro do exército em Muro das Lamentações… Ah, me poupe, né?

Patrícia ficou novamente em silêncio, dessa vez por alguns minutos, até que resolveu perguntar:

– E… E como eu morri?

Rafael, percebendo a irritação crescente e cada vez mais aparente de Sara, respondeu no lugar dela:

– A senhora pegou Covid de uma das pessoas que acampavam em frente a um quartel com a senhora, a doença evoluiu…

– Mas eu tinha saúde de ferro, histórico de atleta, tomava vitamina C todo dia, fiz tratamento preventivo com Cloroquina…

– Ah, mas é que contra a Covid é só vacina mesmo. E consta aqui na ficha que a senhora era antivacina. Aí não tem muito o que fazer… – explicou Rafael.

De repente, Miguel chegou esbaforido e interrompeu a conversa:

– Sara, preciso da sua ajuda. A amiga dessa aí, aquela que tem seu nome, está chegando.

– Mas já?

– E para piorar, a novata acha que Jesus incentivou o uso de arma de fogo.

Sara respirou fundo novamente, revirou os olhos e foi atrás de Miguel.

Publicada originalmente no site Escritor Brasileiro

Publicado emContos

Seja o primeiro a comentar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *