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O novo dilúvio

Naqueles dias, pouco depois das eleições brasileiras, Jesus foi caminhando até São Pedro e disse:

– Pedro, venha comigo até aquela nuvem ali. Precisamos ter uma conversa a sós.

Jesus se afastou em direção ao local indicado e São Pedro, apreensivo, o seguiu. O tom de voz de Jesus era familiar e sempre usado quando alguma coisa não saía como deveria. A nuvem em questão tinha dois montes em formas que lembravam vagamente duas poltronas. Eles se sentaram, um de frente ao outro.

– Aconteceu alguma coisa, Senhor? – indagou Pedro, em tom preocupado.

– Está acontecendo, Pedro. Ah, não! Espera… – Jesus interrompeu o raciocínio, pois sentiu que Pedro estava pensando ter cometido alguma imprudência – Está tudo certo com você, com seu trabalho… Aliás, aqui no Céu está tudo às mil maravilhas, tudo correndo como deveria, uma Paz Eterna. Graças a Deus! O problema é na Terra. Eu estava conversando com Meu Pai agora, aliás, acabei de sair da reunião com Ele, o Miguel, o Gabriel e o Rafael, e a gente decidiu fazer um novo dilúvio. E isso tem a ver com você pois vamos precisar de uma chuvona, daquelas bem fortes, ali no Brasil.

– Mas… no Brasil? O Seu Pai gosta tanto da expressão que criaram para Ele, acho que é “Deus é Brasileiro” e…

– Sim, mas é que não dá mais. A gente conversou bastante, tentamos via iluminação espiritual de algumas pessoas, o Espírito Santo mandou até mensagem pelo Papa e nada.

– Pelo Francisco? Gosto daquele moço…

– Lógico que é pelo Francisco…

– Ah, é que tem o outro também, o Bento XVI… – disse Pedro se explicando.

– Ah, não… Aquele lá ficou quietinho no canto dele depois que renunciou, e está quase subindo: antes de terminar o ano 2022 lá da Terra, ele estará conosco. Deve estar se preparando para fazer o check-out lá embaixo, e logo aparecerá por aqui… Aliás, você não está vendo os grupos de mensagem, né?

– Desculpe, Senhor. Eu confesso que andei um pouco concentrado traçando o planejamento das chuvas para os próximos meses e deixei os grupos de mensagens em segundo plano.

– Tudo bem, Pedrão! Está desculpado. Bem, voltando ao assunto, precisamos mandar umas chuvas fortes no Brasil, fazer um novo dilúvio, mas numa versão mais light. Aquele primeiro, lá da época do Noé, você caprichou, inclusive. Foi “porreta”, como dizem lá no Brasil.

– Mas, Jesus, o que aconteceu para o Seu Pai querer fazer isso de novo, e lá no Brasil? Tem até uma estátua sua lá, tem um estado com nome do Espírito Santo, tem um monte de cidade e estado com nome de gente nossa… O pessoal gosta muito de você, do Seu Pai e de toda a hierarquia…

– Ah, Pedro…, Mas agora ele estão abusando. Sabe aquele lance de eleição que eles fazem lá? Então, teve mais uma há pouco tempo, um tal de Bolsonaro perdeu. Aquele outro lá que já governou, o Lula, esse cara ganhou e agora eles estão acampados em frente aos quartéis do Exército pedindo golpe militar, rezando para soldado, cantando hino nacional para pneu… alguns até viram luzes no céu de uma cidade e falaram que eram os ETs chegando para intervir… não dá mais, sabe? Mas fique tranquilo que, a gente não quer tirar a vida de ninguém, a gente quer dar um susto e não vai precisar de arca nem de um novo Noé.

São Pedro tirou um bloco de anotações do bolso, começou a escrever e Jesus continuou falando e gesticulando.

– Isso, anota aí e depois você me fala o que pensou. Continuando, a gente só quer assustar, mostrar que a gente aqui em cima não concorda com o que eles estão fazendo por lá. E gostamos menos ainda de usarem nosso nome. Pode usar uns raios aqui, uns trovões ali… Eu sei que isso ajuda a impressionar, e esse povo adora filme de Hollywood e aquele monte de efeito. Aí, quando acontece de verdade, fica tudo com medo.

– Pode alagar algumas partes?

– Pode, mas suba só um pouco o nível da água ali perto dos acampamentos, não precisa exagerar como no dilúvio, não. Ah, também pode mandar vento. Sabe aquele vento que parece feito em computador, que vai e leva um monte de coisa que encontra pelo caminho?

Pedro fez que sim com a cabeça.

– Então, esse mesmo. Pode fazer! O ideal é que o vento desmonte alguns acampamentos, só para dar um chacoalhão moral e para ver se esse povo acorda desse surto coletivo.

– Está bem. Anotei aqui: chuva com raio, vento, trovão, alagar algumas partes… O que mais?

– Isso, foque nos acampamentos, principalmente em Brasília.

– Mas, assim, Senhor… Um dilúvio, mesmo que em menores proporções, não é uma medida um pouco radical ou extrema demais?

– Então, é que realmente não dá mais. Sobrou até para mim, acredita? Falaram que eu, o Príncipe da Paz, defendo as armas. O Bolsonaro, o candidato derrotado nas eleições de lá, chegou até a dizer que eu não comprei uma pistola quando estava na Terra porque na minha época não vendia. Cê acredita? E, detalhe, rapaz: ele tem Messias no nome, mas sabe menos sobre mim do que quem nunca se ajoelhou para rezar um Pai Nosso.

Pedro soltou uma leve risada e pediu desculpas logo depois:

– É… Me perdoe por rir, mas realmente não dá, Jesus.

– Para você ver! E a coisa piora: tem gente que fala que precisa eliminar quem “pensa diferente”, só que, quem está interpretando as coisas de forma equivocada são eles. Aliás, chegaram até a agredir gente nossa! Sabe os Cardeais da Católica? Falaram que eles usam vermelho porque são comunistas, e que o comunismo é contra a palavra de Deus. E mais: tem gente nesse grupo dos acampamentos que, na teoria, está do nosso lado mas, na prática, fica fazendo e falando esse monte de absurdo. Eles parecem não lembrar que eu desci, preguei a paz e eles fazem o quê? Geram mais violência e esquecem que violência gera mais violência! E se alguém aparece pregando um discurso de paz, de conciliação, de fraternidade…

– Tudo aquilo que o Senhor sempre disse – interrompeu Pedro, cordialmente.

– Exato! Se aparecer alguém dizendo tudo o que eu sempre disse quando estava na Terra, eles atacam e dizem que é enviado do Satanás para confundir e ludibriar. E a coisa fica ainda pior! Eles se dizem defensores da família, mas brigam com as próprias famílias por causa dessas ideias malucas e sem fundamento. Eles citam o livro do João lá na Bíblia, aquela parte do conhecer a verdade e etc., mas eles vivem e propagam mentiras sobre tudo, acreditam em qualquer simbologia que não diz nada, idolatram pessoas como se fossem emissárias divinas. Fora que ficam em um looping eterno de “72 horas”.

– Como assim, “72 horas”? O que isso quer significa?

– Não significa nada! Eles acreditam em qualquer mentira que aparece e dizem que precisam esperar 72 horas para qualquer coisa acontecer e revogar o resultado das eleições. O problema é que, eles já estão há muito tempo nessa história e a cada dia chega um novo prazo de 72 horas, que entra no lugar de outro que começou antes e chegou ao final, uma loucura danada! Percebe a gravidade?

– É… Desse jeito, parece que não tem jeito!

– Ainda bem, Pedro, que lá no fundo, bem lá no fundo, uma parte dessas pessoas até têm boas intenções, mas, é aquela que a gente sabe: até aquele lugar abaixo da Terra, que a gente não gosta muito de falar o nome por aqui, tem boas intenções – disse Jesus, se abanando em referência às altas temperaturas do inferno. – Só que elas estão se guiando de forma não muito orientada pelos reais preceitos celestes.

– E ninguém tem salvação, Senhor?

– Olha… não dá para dizer que não dá para recuperar. A gente até tenta, o Espírito Santo manda umas orientações e alguns aqui e ali até acordam para a realidade, mas não são todos. É um trabalho lento e vagaroso. O problema é que, tem gente lá embaixo que diz falar por nós aqui de cima, mas não precisa ser teólogo para perceber que não é bem assim. Aí eles pegam a Bíblia, reinterpretam e não contextualizam ou interpretam de forma literal e vira uma bagunça enorme! Por mim, a gente fazia igual ao que eu fiz com aqueles caras do templo, quando eu estava na Terra, lembra? Até porque, na verdade, a coisa, essencialmente, não anda lá muito diferente daquela situação. Mas ninguém concordou e, no fim, achamos melhor dar um sustinho de leve para ver se “pegam no tranco”, como eles dizem lá no Brasil.

– Mas, sei lá… se a coisa está nesse estado, não poderia fazer algo menos drástico e mais definitivo? – sugeriu Pedro.

– Você fala do Juízo Final? Não, não… Aliás, se eu te falar, rapaz, você não vai acreditar! – disse Jesus, se ajeitando na nuvem em forma de poltrona e segurando uma risada. – A coisa está tão doida que é capaz de eu descer para uma intervenção apocalíptica, vamos chamar assim, porque eles adoram o termo “intervenção”, e correr o risco de eles falarem que sou impostor. Se eu chego lá com todo o meu discurso de paz e amor, meu amigo… Eu tô lascado. E é capaz de eu ser crucificado de novo, ou, como eles falam agora em mais um dos modismos delirantes que eles criam de tempos em tempos, é capaz de eu ser “cancelado” nas tais redes sociais.

– Você, Jesus? E sua história? Sua crucificação não serviu para nada? E aquela estátua enorme que eles fizeram no Rio de Janeiro? – indagou Pedro, bastante surpreso.

– Ah, Pedro! Eles não respeitam nada! Eu disse, simbolicamente, para eles comerem meu corpo e beberem do meu sangue como forma de celebrarem a minha memória, e eles parecem ter entendido que é para derrubar mais corpos e escorrer ainda mais sangue como forma de lembrar da minha palavra.

– Jesus, isso não faz sentido!

– Por coisa muito menor do que eu fiz, gente que vai às nossas igrejas foi agredida. Teve agressão e tentativa de repressão durante culto, durante missa. Teve padre da Católica agredido durante a homilia, só porque tocou no assunto “paz e respeito”; teve pastor sendo execrado em rede social por usar discurso fraternal. Se eu desço e falo: “Galera, acabou. Vamos organizar uma fila aqui e ver quem sobe, quem desce, quem fica de recuperação antes de a gente decidir quem vai para onde…”, vão dizer que sou “baderneiro e mentiroso”. Só vão acreditar que Eu sou Eu se estiver segurando uma metralhadora em uma mão, fazendo arminha com a outra e usando um colete cheio de munição, e com uma granada no lugar do meu coração, que certamente eles devem rebatizar para Sagrado Granadão de Jesus. Mas você sabe o que eu penso disso tudo… 

– É, Jesus, de fato, o “Príncipe da Paz” segurando metralhadora não é muito coerente com o que o Senhor sempre foi, é e eternamente será – disse Pedro, novamente segurando a risada.

– Então, bora com esse dilúvio? Vamos dar um susto neles e depois a gente vê o resultado – disse Jesus, em tom motivador.

– Jesus, antes eu tenho uma última pergunta. Diante de tudo o que você me falou, não seria o caso de rever aquele lance de livre arbítrio?

– Olha, rapaz, sabe que eu até pensei em colocar isso na mesa de discussão quando a gente estava fazendo o brainstorming para tentar achar uma solução para essa loucura toda? Porque no brainstorming, você sabe, surge toda e qualquer ideia, e a gente vai falando, vai soltando…

Nesse momento, um enorme raio cortou o céu interrompendo a conversa. Logo depois, um trovão igualmente forte foi ouvido e sentido em todo o Céu. Jesus e Pedro, entendendo o recado, olharam um para o outro e o segundo, se levantando da nuvem em forma de poltrona e depois caminhando apressado em direção ao posto que ocupava anteriormente, sendo observado por Jesus, disse:

– Acho melhor a gente focar no mini dilúvio.

Publicado emContos

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